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O pai que mudou a Justiça após perder tudo para salvar o filho

01-08-2010 12:33

Conheça a história de Adolfo Celso Guidi, que perdeu tudo para cuidar do filho doente

Foto: Fotoarena

(Foto: Geraldo Bubniak/Fotoarena) Adolfo com os filhos Gabrielle e Vitor

 

Carina Martins, iG São Paulo

O último especialista consultado pelo engenheiro Adolfo Celso Guidi quando a doença de seu filho enfim foi diagnosticada repetiu a conclusão dos dois anteriores: não havia nada que se pudesse fazer. Na verdade, o terceiro médico foi ainda mais incisivo que os demais. “Ele disse que eu ia ter que ‘suportar esse fim trágico’”, conta Adolfo. O engenheiro não aceitou apenas "suportar". E hoje, mais de dez anos depois, o fim trágico não chegou.

Adolfo e sua mulher queriam muito ter um filho, mas ele não vinha. Só depois de ele se submeter a uma cirurgia é que o casal conseguiu engravidar. Nessa época, em 1989, eles já tinham saído de Marabá (PA) e voltado para a cidade natal do engenheiro, Ibitinga (SP). Foi no interior paulista, como o pai, que Vitor nasceu. “Ele era saudável. Tudo parecia normal, com exceção de problemas com o leite que ele sempre teve, desde a primeira mamada”, conta. Vitor tinha intolerância à lactose, diagnosticada oficialmente após uma broncopneumonia aos dois anos e meio, quando a família já morava em Curitiba (PR), onde está até hoje. “Migramos para leite de soja e fomos em frente”.

 

Aos quatro anos, Vitor entrou na escola. Seu desempenho surpreendeu tanto os professores quanto os pais. “Ele entrou no Pré-I e no meio do ano já foi puxado para o Pré-II. Ficou uma semana e chamaram para o Pré-III”, lembra. “Ele era muito inteligente, muito esperto. Tinha cinco anos e a escola já queria que ele fosse para a primeira série”. Mas logo a mesma escola começou a perceber problemas.

Antes que Vitor fosse promovido antecipadamente mais uma vez, começou a ter dificuldades para fazer as tarefas. “Não conseguia mais segurar os lápis, ia pegar um copo e derrubava, coisinhas assim”, diz Adolfo. Em retrospecto, o pai diz que havia outros sinais. “Ele nunca conseguiu andar de bicicleta, não conseguia o equilíbrio. São coisas assim que, num primeiro filho, a gente, sem experiência, passa batido”. Quando a escola apontou os novos e agravados obstáculos, “pronto, aí já sabia que era alguma coisa”.

Espera

O diagnóstico do que era essa “alguma coisa” só chegou quase cinco anos depois, quando o menino já tinha nove anos e meio. O caminho até lá, como é de se esperar, não foi fácil nem indolor. “Ao longo desses anos, tudo que você possa imaginar foi feito com ele. Chegou um ponto em que ele não podia nem ver ninguém de jaleco branco. Foi uma infinidade de agulhas, exames de sangue, tudo”.

O sofrimento de Vitor não era só físico, nem só dele. Logo o menino teve que ir para uma escola especial e começou a ter noção de suas novas limitações.“Ele chegava em casa e chorava. Falava que era diferente, pedia para a mãe cuidar dele”, lembra Adolfo. “Me enfiei no trabalho, porque se gastava muito dinheiro, e sobrou para a mãe essas interrogações todas”.

Aos nove anos, Vitor teve uma crise e um médico notou que ele não tinha sensibilidade à dor. Pior: Adolfo percebeu que não era o único com dúvidas e medo. “A plantonista chamou a neurologista e eu percebi que ela se assustou. Saiu da pediatria e foi buscar outro neurologista. Consegui perceber também na face dele a expressão de assustado. O novo médico pediu que a gente procurasse um especialista”, conta Adolfo.

Nesse meio tempo, Adolfo perdeu seu emprego como gerente de uma concessionária.

O pai levou Vitor então a um hospital de referência, onde encontrou um novo e dedicado médico. “O médico tentou tudo que estava ao alcance dele. Até que me disse que eu deveria ir para os Estados Unidos investigar o caso do meu filho, porque aqui os recursos já estavam esgotados”. Por causa do desemprego, no entanto, a família não tinha como chegar tão longe. “Então ele me deu o contato de um especialista na Argentina”.

Diagnóstico

O pai ia sozinho com o filho, mas sua esposa tinha acabado de dar à luz Gabrielle, a segunda filha do casal. Foram os quatro de carro até Buenos Aires atrás de respostas. Depois de dez dias, o diagnóstico: gangliosidose GN1 tipo 2, doença degenerativa e incurável.

Com o diagnóstico, veio também a avaliação do médico: “não tem o que fazer”.

 

 

“Aí some o chão. Você perde a firmeza, é só pergunta sem resposta. Você começa a buscar um monte de coisas, não acha a resposta e só sobra um caminho”, diz ele sobre o momento que foi também o de seu encontro com a religião. “Levamos exames para um congresso em São Paulo, e o médico que encontramos lá reforçou o que o outro já dissera: ‘não existe nada no mundo que se possa fazer, você vai ter que suportar esse fim trágico’”. Na viagem de volta para Curitiba, Adolfo dirigiu apenas 50 km antes de entregar a direção para seu irmão. “Na viagem mesmo comecei a rezar e refletir. Então resolvi que ia deixar tudo para me dedicar à pesquisa e aos cuidados do Vitor”.

Adolfo passou os oito meses seguintes “enfiado na biblioteca do setor de biomédicas da Universidade Federal do Paraná”. Por sua conta, foi se informar sobre medicina. “Comecei com genética e fui até fisiologia”. Depois de cerca de um ano de estudos, não tinha encontrado quase nada sobre a doença do filho. Quando não sabia mais o que fazer, achou um livro que falava muito de Tay-Sachs e um pouco do tipo da gangliosidose de Vitor. “Entendi que era uma doença de armazenamento, que o problema era um enzima, e pensei então na teoria da substituição enzimática”. Com uma trabalhosa busca, um ano de pesquisa e uma série de coincidências, ele desenvolveu um tratamento de apoio que acredita estar fazendo a diferença para explicar a razão de seu filho ter contrariado as previsões e chegado, até agora, aos 21 anos.

Dívidas

Mas durante esse período, sua dedicação foi exclusiva ao filho. Sem emprego, só pegava bicos esporádicos. “Aí foi tudo que tinha - cartão de crédito, cheque especial. Voltei a procurar emprego, mas não conseguia, porque nunca escondi que tenho um filho com problema”, diz. Enfim arrumou trabalho dando treinamentos para uma empresa, mas o trabalho o obrigava a viajar muitos dias por semana. Foi assim por três anos. “Mas o Vitor foi crescendo, e ficou difícil para a esposa cuidar dele”. A doença é degenerativa, o que significa que Vitor perdeu boa parte das habilidades que tinha: segundo o pai, hoje ele tem idade mental de um menino de dois anos, preso no corpo de um homem, e com limitações físicas. Ou seja, precisa de atenção e cuidados cotidianos bastante trabalhosos.

Para ajudar a mulher a cuidar do menino, teve que deixar mais um emprego. A esta altura, a dedicação já tinha custado a ele não só sua vida financeira, mas também o casamento, que não resistiu às dificuldades. “O primeiro impacto é no financeiro, e aí o financeiro faz o trabalho dele. Hoje vivemos na mesma casa, com separação de corpos. Primeiro porque não temos condição financeira de vivermos separados e, segundo, porque ele precisa de nós dois”.

Final feliz

Quando deixou o segundo emprego, o acaso novamente estendeu a mão. O engenheiro recebeu cinco mil reais que não esperava. O suficiente para fazer uma terraplanagem na parte da frente da casa, onde montou uma oficina mecânica sem telhado, que sustenta a família até hoje.

No processo do tratamento de Vitor, no entanto, as dívidas custaram a casa onde moram e onde fica também a oficina, sua única fonte de renda. “Em 2001, a casa foi para leilão. Procurei advogado e não tinha como pagar. Desisti, fiquei esperando ação de despejo. Até que encontrei um que aceitou minha causa para receber quando eu pudesse”. O processo foi andando, o valor foi reajustado de R$ 120 mil para R$ 50 mil, ainda impagável. “Aí Deus age de novo, porque a Teresa veio de Brasília para cá”, diz, sobre a conciliadora da Caixa Maria Teresa Maffia. Ela, credora, forneceu o material necessário para que a juíza federal Anne Karina Costa colocasse em prática uma ideia que poderia livrar a família de ficar na rua – que era o próximo passo do processo.

“Levei o Vitor, coloquei para ambas o motivo de eu ter parado de cumprir minhas obrigações financeiras. Elas ficaram muito sensibilizadas. Aquela sala grande cheia de diretores, advogados, ficou em silêncio”, diz ele. A juíza lembrou então de um fundo mantido pela Justiça com as penas pecuniárias. Ela propôs a inscrição do pai e de sua história de cuidados como um projeto para poder receber o fundo que quitaria sua dívida. Quando o Ministério Público e a Vara Criminal aceitaram o pedido, em novembro do ano passado, foi a primeira vez que esta decisão aconteceu na Justiça brasileira - mudada pela determinação de um pai.

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